quarta-feira, 8 de março de 2017

SOBRE SER MULHER NA ERA DO ABANDONO

Atrás da Porta

( Francis Hime - Chico Buarque)

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...


O ABANDONO
Um dos principais motivadores para o desenvolvimento de sintomas depressivos nos usuários que buscam atendimento na Unidade Básica de Saúde é o histórico de abandono. São mulheres, entre 30 e 60 anos, que estão enfrentando sintomas como sentimento de desesperança, cansaço extremo, falta de motivação para tarefas básicas como trabalhar, cuidar da casa e de si mesmas, e que tem o mesmo foco na hora de relatar sua história: foram abandonadas, na infância pelo pai, pela mãe, na adolescência pelo namorado, pelo marido, pelos maridos, pelos filhos. O abandono gera marcas profundas, desestruturando muitas pessoas, reabrindo feridas da infância, fazendo com que essas mulheres entrem em uma relação destrutiva consigo mesma. 
Nos relatos abaixo, os nomes das pacientes foram trocados para que se preserve sua identidade.

LÚCIA
            Lúcia foi abandonada pelo esposo ainda dentro do casamento. Durante 30 anos viveram juntos, tiveram 2 filhos, hoje adultos, e o esposo tinha uma outra família há poucos metros de onde morava. Enfrentou a fúria do marido diversas vezes, e apanhou, muito. Foi espancada, enforcada, trancafiada, explorada, retalhada, atropelada. Certa vez estava passando roupa e o marido tentou matá-la. Ela conta que a culpa foi dela, porque “correu para o quarto errado, que não tinha janela para fugir.” Hoje vivem separados: ela na casa que um dia foi do casal, e ele com a outra família. Ela conta que ele foi embora, simplesmente, há aproximadamente 10 anos, e que isso foi um alívio para ela, pois pensava que iria morrer em suas mãos. Ficaram os filhos: dois meninos, que cresceram e se tornaram homens.
            Lúcia enfrenta agora o abandono dos filhos. Primeiro o mais velho, que vai embora para viver em uma comunidade espírita no norte do país. Ele já voltou, mora próximo à sua casa, mas nunca perdoou esse distanciamento de quando saiu pela primeira vez de casa. Agora, o mais novo, que casou mas continuou vivendo junto à mãe, teve uma filha, e foi morar em sua própria casa. O filho foi embora, com a neta, com a nora, e ela não aguenta. Procurou atendimento, está sufocada, não consegue chorar, sente medo o tempo inteiro, não quer ficar sozinha, não quer morrer sozinha, não quer morrer. Lúcia chora. Como um bebê. Lúcia, o bebê abandonado. Em sua casa, enorme, sem o esposo, sem os filhos, sem a neta. Quem sabe em qual deles ela revive um outro abandono, esquecido, longínquo, remoto? Qual o primeiro abandono de Lúcia? Lúcia teme a morte, e quando Lúcia morrer, finalmente poderá abandonar sua dor.



MARIZETE
O pai abandonou a mãe no momento de registrar a ela e à sua irmã, gêmea. Disse que precisava comprar algo no mercado, em frente ao cartório, e nunca mais voltou. A mãe, por sua vez, a deixou com os avós. Mais um abandono. Aos 11 anos, morre a mãe. Sente-se sozinha, e sem ter como recuperar essa relação. Casou-se, com um dependente químico, que a deixava sozinha em casa com os filhos para cheirar cocaína com amigos e outras mulheres. Abandonada, em casa, separou-se e deixou um dos filhos com os avós paternos. Culpa-se por ter que abandonar um deles. E agora, o filho, que é dependente químico, quer abandonar a esposa e o filho para voltar a morar com ela. Ela busca atendimento para empoderar-se e dizer ao filho que não, que não quer continuar vivendo neste ciclos de abandonos. Marizete quer abandonar a si mesma em sua própria vida, sem ter que cuidar mais dos abandonos do mundo, e sem ser abandonada por ninguém. Viver, apenas. Deixar-se fluir e esquecer o mar de abandonos em que se afoga diariamente.

DINORÁ
A fragilidade é a marca de Dinorá. Fala com uma doçura lânguida, as mãos em movimento chegam a dançar, os olhos se perdem, abandonados em um discurso queixoso da própria solidão. Dinorá foi abandonada no Natal passado, pelo esposo, que foi morar com outra mulher, após 20 anos de casamento, e levou os dois filhos do casal. Ela passou a virada do ano sozinha em casa, com medo de se abandonar à ideia de suicidar-se, sentada na cozinha, esperando a ajuda que nunca veio, esperando a ligação da filha, o abraço do filho, o pedido de perdão do esposo. E assim passou todo o mês de janeiro, quando os filhos voltaram, e o esposo também, mas agora para pedir que ela o ajudasse a montar uma nova casa. Comprou geladeira, fogão, forno microondas. Ele foi morar em outra casa. Mudou de namorada. Não conseguiu se manter financeiramente e voltou a morar com Dinorá. Ela adoeceu e passou 18 dias internada com meningite. Não recebeu nenhuma visita. Nem dos filhos. Após a alta voltou para casa, e reclama que ninguém pergunta por sua saúde, ninguém quer saber como ela está. Os dois filhos e o ex esposo fazem questão de ignorá-la. Ela sofre. Não quer mais viver nesta situação, mas não quer abandonar os filhos. Coisa de mãe. Dinorá vai levando. Quer abandonar tudo, ir morar no interior com o pai e as irmãs. Mas depois. Depois do Natal. Vai fazer um ano que o marido a abandonou. Ela agora odeia o Natal. Mas não quer passar longe dos filhos. A fragilidade dissimula uma força que nem a própria Dinorá conhece, pois não é fácil lutar contra a correnteza, mas ela ainda respira. Dinorá ainda nada, mas não sabe para onde.

FÁTIMA
Ela quer morrer. Porque o marido a deixou. Depois de 20 anos de casamento, ele a deixou, não pode mais viver com ela, e ela não quer morrer sem uma família. A mãe enlouqueceu depois que foi abandonada, e ela não quer ter o mesmo destino. Ela lembra da mãe, feliz, trabalhando, até que o pai foi embora. A mãe enlouqueceu. Ela também está enlouquecendo. Ela quer morrer.
O histórico de abandonos passa também pela mãe. Fátima foi violentada por um tio quando tinha 13 anos de idade e a mãe a repreendeu por dedurá-lo. Devia ter ficado calada. Foi responsável pelo divórcio da tia. A mãe, que devia protegê-la, queria proteger o casamento da irmã. O casamento é mais importante. Ela casou. Casou e agora, depois de tudo pronto, depois de tudo acertado, depois de tudo planejado, ele mudou de ideia. De certa forma, a sociedade ensinou isso a ela: só vai ser feliz se estiver casada. Agora tudo acabou, e ela quer morrer. Não quer matá-lo dentro de si. Não o esposo, mas o casamento. Quantas Fátimas teremos que desconstruir até que possamos reerguer em uma arquitetura saudável uma nova Fátima, completa e sozinha, mas viva. Porque no fundo, ela quer viver e ver-se assim, como se casada consigo mesma. Vamos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
E agora, Maria?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, Maria?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, Maria?
Está sem marido,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, Maria?

E agora, Maria?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu vestido de vidro,
sua incoerência,
seu ódio 
 e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
Maria, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é dura, Maria!

Sozinha no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, Maria!
Maria, para onde?
*Livre adaptação do poema JOSÈ, de Carlos Drummond de Andrade


terça-feira, 13 de setembro de 2016

CONSELHOS PARA A MULHER FORTE




CONSELHOS PARA A MULHER FORTE
(Gioconda Belli, Nicarágua, 1948)
Se és uma mulher forte
te protejas das hordas que desejarão
almoçar teu coração.
Elas usam todos os disfarces dos carnavais da terra:
se vestem como culpas, como oportunidades, como preços que se precisa pagar.
Te cutucam a alma; metem o aço de seus olhares ou de seus prantos
até o mais profundo do magma de tua essência
não para alumbrar-se com teu fogo
senão para apagar a paixão
a erudição de tuas fantasias.
Se és uma mulher forte
tens que saber que o ar que te nutre
carrega também parasitas, varejeiras,
miúdos insetos que buscarão se alojar em teu sangue
e se nutrir do quanto é sólido e grande em ti.
Não percas a compaixão, mas teme tudo que te conduz
a negar-te a palavra, a esconder quem és,
tudo que te obrigue a abrandar-se
e te prometa um reino terrestre em troca
de um sorriso complacente.
Se és uma mulher forte
prepara-te para a batalha:
aprende a estar sozinha
a dormir na mais absoluta escuridão sem medo
que ninguém te lance cordas quando rugir a tormenta
a nadar contra a corrente.
Treine-se nos ofícios da reflexão e do intelecto.
Lê, faz o amor a ti mesma, constrói teu castelo
o rodeia de fossos profundos
mas lhe faça amplas portas e janelas.
É fundamental que cultives enormes amizades
que os que te rodeiam e queiram saibam o que és
que te faças um círculo de fogueiras e acendas no centro de tua habitação
uma estufa sempre ardente de onde se mantenha o fervor de teus sonhos.
Se és uma mulher forte
se proteja com palavras e árvores
e invoca a memória de mulheres antigas.
Saberás que és um campo magnético
até onde viajarão uivando os pregos enferrujados
e o óxido mortal de todos os naufrágios.
Ampara, mas te ampara primeiro.
Guarda as distâncias.
Te constrói. Te cuida.
Entesoura teu poder.
O defenda.
O faça por você.
Te peço em nome de todas nós.

domingo, 4 de setembro de 2016

REDES: um conceito que precisa ser difundido e aprofundado




Redes como Sistemas de Interação Social

O conceito de rede é pensado, muitas vezes, como um tipo de sistema de inter-relação social diferente do grupo, por diversas características. Apesar de algumas divergências teóricas, o principal aspecto definidor do que seria uma rede é a sua capacidade de articulação e rearticulação permanente.
As práticas interativas são o motor da produção da cultura, fazendo com que existam múltiplas possibilidades de arranjos e negociações, dependendo do potencial de contatos e fronteiras que os agentes sociais envolvidos em tais processos podem estabelecer. Nesse sentido, seria impossível perceber a sociedade como uma unidade fechada, com suas características dadas, mas sim como um processo permanente de interações sociais e culturais, em que estas seriam constantemente construídas e desconstruídas, obedecendo a demandas contextuais.
As redes podem ser pensadas em sentidos diversos: ou com o sistema de integração entre pessoas, mediante práticas de interação, em um sentido mais social; ou como um sistema de troca de mercadorias e bens materiais, em um sentido mais econômico; ou como trocas de informações e bens simbólicos, em um sentido mais cultural.
A globalização traz, como um dos seus efeitos mais perceptíveis, a possibilidade de se estabelecer explicitamente sistemas de interação social em rede, em que sujeitos, através de links, participam de trocas econômicas e culturais em amplas escalas, que extrapolam limites espaciais e temporais antes rígidos.
Não há dúvida, portanto, de que a ideia de uma sociedade em rede, a partir das transformações citadas acima, é pertinente e adequada aos estudos sobre as sociedades contemporâneas. No entanto, ele vem sendo tratado como dado, sem qualquer esforço de localizá-lo historicamente e mesmo de conceituá-lo minimamente. Há, portanto, um uso generalizante do conceito que só tende a esvaziá-lo, em detrimento de sua riqueza e adequação.
O que poderíamos destacar, no caso contemporâneo, em face do processo de globalização, é a expansão da rede, sua potencialização ampliada e sua explicitação. Nesse sentido, o conceito é muito pertinente, pois trata-se, sem dúvida, de uma conjuntura histórica em que os sentidos propostos para o conceito de rede (interação entre indivíduos, troca de mercadorias e fluxo de informações) estão evidenciados e acabam ocupando u m lugar central na configuração cultural, política, econômica e social. Mas é preciso cuidado para não cairmos em um reducionismo histórico, negando o quanto as questões que hoje nos inquietam fazem parte de um processo de longa duração.

Fonte: http://www.revistas.ufg.br/ci/article/viewFile/24452/15165

sábado, 27 de agosto de 2016

SAÚDE COLETIVA E O MÉTODO PAIDÉIA


            A principal forma de intervenção sobre a realidade sanitária convencionou-se Vigilância à Saúde, utilizando-se de métodos de promoção e prevenção para garantir saúde à coletividade. Organiza-se em três áreas: Vigilância Sanitária, Vigilância Epidemiológica e Vigilância Sobre o Ambiente
São áreas estritamente regulamentadas. O agir dos profissionais apoia-se em leis, decretos e portarias, caracterizando um modo de proceder com base em regras, tendo como princípio central a autoridade sanitária.
            Em realidade, a vigilância em saúde precisa ser tomada em uma perspectiva mais ampliada e com projetos que assegurem seu desenvolvimento nestas várias dimensões. Assim, a Vigilância é uma organização, e, nesse sentido, faz parte dos SUS – uma rede de pessoas, recursos e equipamentos – com autoridade legal para intervir sobre ambiente, sobre o setor produtivo, sobre os serviços de saúde e até mesmo sobre a vida particular de famílias e pessoas.
            Para além disso, também é um conjunto de conhecimentos sobre a produção de saúde e de doença. Conhecimentos técnicos, potentes para assegurar a saúde às pessoas. Uma organização com poder legal e um campo de conhecimento especializado.

- A organização, a equipe de técnicos, a lei, o saber e o poder -

Objetivo, Objeto e meio de intervenção em Saúde Coletiva
Nosso objetivo é a saúde. Porém, nosso objeto de estudo, para alcançarmos este objetivo, é o adoecer. E tudo o que faz parte desse processo de adoecimento nos diz respeito. O “objeto” sobre o qual trabalha tem, portanto, três dimensões: o ambiente, a organização social e as pessoas. No entanto, a Vigilância à Saúde costuma esquecer-se das pessoas, valorizando regras que são voltadas apenas para doenças e para ambientes. Esquecendo o sujeito, esquece que mexe com a vida de um monte de gente.

            Para alcançar o seu objetivo, a Saúde Coletiva usa técnicas de promoção ou de prevenção. A Promoção à Saúde vale-se de vários modos de intervenção: o mais organizado e sistemático é o que se convencionou denominar de Vigilância Sanitária; outro modo é a Educação em Saúde. O problema está em acabarmos reduzindo a Vigilância apenas a esta dimensão do “agir segundo regras”. As normas de saúde também são embates sociais e políticos. Neste sentindo, a Vigilância deve desenvolver um pensamento e um agir também estratégicos; ou seja: os agentes do Estado são convocados a construir aliados e parceiros na sociedade civil, bem como elaborar projetos de abrangência intersetorial, para além de sua área de competência. A Vigilância como responsabilidade do Estado, mas também da sociedade civil.

- Envolver a sociedade na defesa de sua própria saúde-

“Agir sobre” ou “Agir com” as pessoas?
Haveria uma terceira alternativa para lidar com esse impasse, uma maneira que não exclui o “Agir segundo Regras” ou o “Agir Estratégico”: trata-se do “Agir Paidéia”. Paidéia é um conceito antigo, oriundo da Grécia, que significa desenvolvimento integral das pessoas. Isso implica que um Projeto de Saúde Coletiva (de vigilância) deveria almejar não somente alterar um ambiente, mas também as pessoas e as relações sociais (de poder) envolvidas. Fazer Saúde Coletiva com as pessoas e não sobre elas. Para isso, é fundamental produzir-se um AUMENTO DA CAPACIDADE DE ANÁLISE E DE INTERVENÇÃO dos agrupamentos humanos em geral: a equipe técnica, o grupo vulnerável, a comunidade, movimentos, organizações, instituições, etc.

- Aumentar a capacidade de análise e de intervenção: saber sobre o problema e agir sobre o problema –


Saber e fazer. Teoria e Prática.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

“Sociedade Disciplinar e Sociedade de Controle: o papel da Rede nas Relações de Poder e na Organização.”


A Sociedade Disciplinar e suas Ferramentas e a Sociedade de Controle e suas Novas Ferramentas
A Sociedade Disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento. A Sociedade de Controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo virtualização junto às redes de informação.
No ambiente de trabalho, as mudanças nos modelos de gestão refletem a mudança no modelo de sociedade. Quando passamos da modernidade para a contemporaneidade, podemos inferir mudanças na forma como se organizam as relações de poder.
As relações que eram antes permeadas pela hierarquia, vigilância, autoridade e centralização do poder, passam a trabalhar sob uma perspectiva descentralizadora, onde a participação de todos é, não só esperada, como estimulada pelos núcleos que gerenciam os processos de gestão. A obediência cega, que evita o conflito, o questionamento, o embate, dá lugar a um processo educativo e inclusivo, que além de gerar nas organizações o sentimento de pertencimento à instituição, também gera o senso de responsabilidade, posto que se todos participam da gestão, a responsabilidade é de todos. Um reflexo, talvez, da própria democracia, uma forma de governo que marca, em grande parte do globo, o nosso tempo.
Além da participação nas decisões e a divisão das responsabilidades, há a perspectiva da impossibilidade de controle centralizado. Os espaços de convivência são muitos, múltiplos e com configurações plurais e infinitas. E além dos espaços físicos, hoje vivemos sob a perspectiva de um espaço virtual que influencia as relações e os julgamentos fora dele. A vigilância entre pares, nova forma de controle da sociedade, é fortalecida com a criação de uma rede virtual alimentada pela vaidade, culminando na disputa pelo poder, transpassada pela dificuldade que o ser humano tem de lidar com a própria solidão.
Se tomarmos como premissa que a Sociedade de Controle é uma evolução da Sociedade Disciplinar, podemos afirmar que a criação da rede virtual e seus desdobramentos (mercado, relações, novos modos de subjetivação) é um marco histórico. E hoje é um dos ambientes onde as relações de poder se estabelecem com facilidade, rapidez e alcance incontroláveis. A própria rede é detentora de um poder ainda incalculável. Só de pensarmos na possibilidade de acordarmos em uma determinada manhã sem a rede, podemos imaginar o caos que se instalaria em todas as esferas da sociedade.

Analítica do Poder, o Estado e a Rede
A proposta de Foucault para uma análise das relações de poder nega a necessidade de disputas baseadas em uma oposição binária: dominados e dominadores. Segundo Foucault (1979, apud MAIA, Tempo Social, 1995, p. 87)  “Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de forças  múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem as redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências, desses afrontamentos locais.” A partir daí, não há como negar que as organizações advindas das relações pelas redes sociais constituem a expressão máxima desta ideia. Manifestações políticas que surgem em pequenas comunidades e que, através da possibilidade de comunicação ilimitada, tomam corpo e ganham uma proporção gigantesca, buscando alianças em outras comunidades, grupos, e que através da transversalidade conseguem fortalecer a própria rede, retroalimentando-se. Um dos exemplos mais consistentes é a chamada “Primavera Árabe”. Além do enorme alcance para a mobilização e organização das pessoas em manifestações contra os governos, a publicação de imagens e relatos na rede impede o segredo. É o controle entre pares na esfera das nações. A opinião pública pesa, e a pressão social exercida na rede hoje pode ser mais poderosa que um exército. O Estado, expressão máxima da organização disciplinadora, resiste, mas acaba por ser dissuadido, influenciado, transformado em outro tipo de Estado, a partir desta nova configuração do poder da sociedade.

A Rede dentro da Organização e a Organização dentro da Rede
A influência das redes sociais nas organizações ultrapassa os limites da vida individual e chegam até sua representação no mercado. O sujeito que participa de um processo seletivo para trabalhar em uma empresa tem sua imagem perante a sociedade avaliada de acordo com investigações na rede. O consumidor final do produto da empresa é consultado para fins de melhorias no produto final com o auxílio da rede. A empresa é avaliada pelo candidato a uma vaga com base em dados colhidos na rede. Por isso, quando falamos que a disciplina (base sob a qual se edificou a Sociedade Disciplinar) foi interiorizada neste novo modelo (Sociedade de Controle), não há como negar que as relações de poder na sociedade contemporânea ganham, no espaço virtual, condições de expressão máxima desta nova configuração de exercício do poder. Este é exercido fundamentalmente por três meios globais absolutos: o medo, o julgamento e a destruição.  Tudo o que você faz, diz ou escreve está exposto à ser publicado na rede e usado contra você.
Em contrapartida, tudo o que você faz, diz ou escreve, pode ser publicado e usado a seu favor. O projeto de Foucault também abandona uma visão tradicional do poder onde sua atuação se baseia fundamentalmente em aspectos negativos: proibindo, censurando, interditando, reprimindo. Segundo ele (1979, apud MAIA, Tempo Social, 1995, p. 86) “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”. É neste sentido que as redes sociais ganham força, adeptos, e fomentam diversos tipos de usos. A rede ganha poder. Mas, ao mesmo tempo, para o indivíduo, ela também pode ser um espaço de criação, de subjetivação, de criação imagética. E é um espaço de resistência do sujeito, onde ele é capaz de lutar contra o que o esmaga. Apesar dos pesares, a Rede é um espaço de vida para o sujeito, para o coletivo e para a organização. Apesar de deter todo este poder, é só por conta da liberdade de seus usuários que nela existe todo o potencial de revolta, revisitando novamente o fundamento da projeto de Foucault, e justificando uma análise cada vez mais profunda de sua representação nas configurações das relações sociais na contemporaneidade.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Sociedade Disciplinar e Sociedade Controle




A mudança no modelo de sociedade, quando passamos da modernidade para a contemporaneidade, envolve mudanças na forma como se organizam as relações de poder. De uma sociedade vista por Foucault como “Disciplinar”, para um modelo de sociedade identificada por Gilles Deleuze (1992) como de “controle”. Hoje, encontramo-nos num momento de transição entre um modelo e outro. Estamos saindo de uma forma de encarceramento completo para uma espécie de controle aberto e contínuo.
A esse novo modo de organização social chamamos de sociedade de controle, que de certa forma é uma evolução da sociedade disciplinar. Não que esta tenha deixado de existir, mas foi expandida para o campo social de produção. Segundo Foucault, a disciplina é interiorizada. Esta é exercida fundamentalmente por três meios globais absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Logo, com o colapso das antigas instituições imperialistas, os dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados. As instituições sociais modernas produzem indivíduos sociais muito mais moveis e flexíveis que antes. Essa transição para a sociedade de controle envolve uma subjetividade que não está fixada na individualidade. O indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas, é um ser global. Mesmo fora do seu local de trabalho, continua a ser intensamente governado pela lógica disciplinar.  
A forma cíclica e o recomeço contínuo das sociedades disciplinares modernas dão lugar à modulação das sociedades de controle contemporâneas nas quais nunca se termina nada, mas exige-se do homem uma formação permanente.
Enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo virtualização junto às redes de informação. Se nas sociedades disciplinares o observador deve estar de corpo presente e em tempo real a observar-nos e a vigiar-nos, nas sociedades de controle esta vigilância torna-se rarefeita e virtual. As sociedades disciplinares são essencialmente arquiteturais: a casa da família, o prédio da escola, o edifício do quartel, o edifício da fábrica. Por sua vez, as sociedades de controle apontam uma espécie de anti-arquitetura. A ausência da casa, do prédio, do edifício é fruto de um processo em que se caminha para um mundo virtual. 
É importante percebermos que na sociedade de controle, o aspecto disciplinar não desaparece, apenas muda a atuação das instituições. Os dispositivos de poder que ficam circunscritos aos espaços fechados dessas instituições passam a adquirir total fluidez, o que lhes permite atuar em todas as esferas sociais. Entre os princípios norteadores desta dinâmica, destaca-se a abolição do confinamento enquanto técnica principal disciplinadora.
As técnicas disciplinares originadas a partir do séc. XVIII destinavam-se a garantir que os indivíduos – por meio dos seus corpos – fossem submetidos a um conjunto de dispositivos de poder e de saber, baseados na vigilância permanente, na normalização dos seus comportamentos e na exposição a exames. Como forma de se produzir verdades sobre eles mesmos, essas práticas tinham como objetivo a extração máxima das potencialidades e, portanto, as instituições como escolas, fábricas, hospitais – entre outros – cumpriam um papel fundamental na implementação desses mecanismos, com o objetivo de tornar os indivíduos dóceis.
É neste sentido que a noção de confinamento, amplamente utilizada a partir do séc. XVIII, norteadora do funcionamento desses estabelecimentos, deixou de ser a estratégia principal do exercício do poder. O controle ao contrário, ultrapassa a fronteira entre o público e o privado. Aqui, reside um dos aspectos fundamentais na construção da passagem da sociedade disciplinar para a de controle: há um processo de instauração da lógica do confinamento, em toda a sociedade, sem que seja necessária a existência de muros que separem o lado de dentro das instituições do seu exterior.
Há uma vigilância contínua, concretizada pela propagação das câmaras espalhadas por toda a parte: no comercio, bancos, escolas e até mesmo nas ruas. Isto traz a dimensão da sociedade autovigiada. Uma vigilância intensificada pela disseminação de dispositivos tecnológicos de vigilância presentes até mesmo ao “ar livre”. Todos podem e querem espiar todos.
Se a principal premissa da sociedade disciplinar era fazer com que o indivíduo modelasse o seu comportamento, a partir da possibilidade de estar sendo vigiado por alguém, essa perspectiva transmutou-se. O que presenciamos na sociedade de controle é que houve uma espécie de incorporação da disciplina. A tal ponto, que os indivíduos podem estar sob os efeitos dos dispositivos disciplinares, independente, da presença de algum tipo de autoridade investida de poderes capazes de impor os procedimentos de poder e de saber.
A sociedade de controle redimensiona e amplifica os pilares constituintes da sociedade disciplinar.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Mito da Caverna e as Redes Sociais



No mito da caverna, este mundo sensível onde vivemos não é o mundo real. O mundo real é o mundo das ideias. O mundo sensível é uma cópia imperfeita do mundo das ideias, onde cada coisa tem sua ideia correspondente. Os prisioneiros que vivem no interior da caverna passam o tempo olhando sombras projetadas na parede. O verdadeiro mundo real, na alegoria, está do lado de fora: mundo do intelecto.
O que entendemos hoje como avanço nas relações sociais, afirmado por pessoas de todas as classes que utilizam as redes, lembra a analogia criada por Platão em A República. Porém, fazendo um movimento contrário, o uso abusivo das redes sociais é como um repuxo histórico, e pode estar nos levando de volta ao fundo da caverna.
As facilidades advindas da virtualização de algumas ações que não são prazerosas (pagar contas, declarar impostos, negociar) podem ser vistas como instrumentos que trazem qualidade de vida aos cidadãos. Mas, em tempos de uma sociedade que abusa de tudo para diminuir sua ansiedade e elaborar suas angústias (comida, drogas, exercícios, trabalho), é possível notar que há um exagero no uso das redes sociais com este mesmo caráter, como um alívio imediato e superficial para tensões muito profundas, que jamais se resolverão no espaço virtual. Neste sentido, as redes sociais podem ser consideradas um sucedâneo cultural, e enganando a todos faz com que acreditem que façam parte de algo especial... Ao ludibriar o internauta, que acredita estar sendo conduzido ao mundo das idéias, a rede imobiliza o seu grande potencial transformador e neutraliza seu poder resistência.
No mito de Platão, o mundo físico é uma cópia imperfeita do mundo das idéias. Para além das analogias, o mundo virtual, mito da contemporaneidade, é a cópia imperfeita da cópia imperfeita.