quarta-feira, 8 de março de 2017

SOBRE SER MULHER NA ERA DO ABANDONO

Atrás da Porta

( Francis Hime - Chico Buarque)

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...


O ABANDONO
Um dos principais motivadores para o desenvolvimento de sintomas depressivos nos usuários que buscam atendimento na Unidade Básica de Saúde é o histórico de abandono. São mulheres, entre 30 e 60 anos, que estão enfrentando sintomas como sentimento de desesperança, cansaço extremo, falta de motivação para tarefas básicas como trabalhar, cuidar da casa e de si mesmas, e que tem o mesmo foco na hora de relatar sua história: foram abandonadas, na infância pelo pai, pela mãe, na adolescência pelo namorado, pelo marido, pelos maridos, pelos filhos. O abandono gera marcas profundas, desestruturando muitas pessoas, reabrindo feridas da infância, fazendo com que essas mulheres entrem em uma relação destrutiva consigo mesma. 
Nos relatos abaixo, os nomes das pacientes foram trocados para que se preserve sua identidade.

LÚCIA
            Lúcia foi abandonada pelo esposo ainda dentro do casamento. Durante 30 anos viveram juntos, tiveram 2 filhos, hoje adultos, e o esposo tinha uma outra família há poucos metros de onde morava. Enfrentou a fúria do marido diversas vezes, e apanhou, muito. Foi espancada, enforcada, trancafiada, explorada, retalhada, atropelada. Certa vez estava passando roupa e o marido tentou matá-la. Ela conta que a culpa foi dela, porque “correu para o quarto errado, que não tinha janela para fugir.” Hoje vivem separados: ela na casa que um dia foi do casal, e ele com a outra família. Ela conta que ele foi embora, simplesmente, há aproximadamente 10 anos, e que isso foi um alívio para ela, pois pensava que iria morrer em suas mãos. Ficaram os filhos: dois meninos, que cresceram e se tornaram homens.
            Lúcia enfrenta agora o abandono dos filhos. Primeiro o mais velho, que vai embora para viver em uma comunidade espírita no norte do país. Ele já voltou, mora próximo à sua casa, mas nunca perdoou esse distanciamento de quando saiu pela primeira vez de casa. Agora, o mais novo, que casou mas continuou vivendo junto à mãe, teve uma filha, e foi morar em sua própria casa. O filho foi embora, com a neta, com a nora, e ela não aguenta. Procurou atendimento, está sufocada, não consegue chorar, sente medo o tempo inteiro, não quer ficar sozinha, não quer morrer sozinha, não quer morrer. Lúcia chora. Como um bebê. Lúcia, o bebê abandonado. Em sua casa, enorme, sem o esposo, sem os filhos, sem a neta. Quem sabe em qual deles ela revive um outro abandono, esquecido, longínquo, remoto? Qual o primeiro abandono de Lúcia? Lúcia teme a morte, e quando Lúcia morrer, finalmente poderá abandonar sua dor.



MARIZETE
O pai abandonou a mãe no momento de registrar a ela e à sua irmã, gêmea. Disse que precisava comprar algo no mercado, em frente ao cartório, e nunca mais voltou. A mãe, por sua vez, a deixou com os avós. Mais um abandono. Aos 11 anos, morre a mãe. Sente-se sozinha, e sem ter como recuperar essa relação. Casou-se, com um dependente químico, que a deixava sozinha em casa com os filhos para cheirar cocaína com amigos e outras mulheres. Abandonada, em casa, separou-se e deixou um dos filhos com os avós paternos. Culpa-se por ter que abandonar um deles. E agora, o filho, que é dependente químico, quer abandonar a esposa e o filho para voltar a morar com ela. Ela busca atendimento para empoderar-se e dizer ao filho que não, que não quer continuar vivendo neste ciclos de abandonos. Marizete quer abandonar a si mesma em sua própria vida, sem ter que cuidar mais dos abandonos do mundo, e sem ser abandonada por ninguém. Viver, apenas. Deixar-se fluir e esquecer o mar de abandonos em que se afoga diariamente.

DINORÁ
A fragilidade é a marca de Dinorá. Fala com uma doçura lânguida, as mãos em movimento chegam a dançar, os olhos se perdem, abandonados em um discurso queixoso da própria solidão. Dinorá foi abandonada no Natal passado, pelo esposo, que foi morar com outra mulher, após 20 anos de casamento, e levou os dois filhos do casal. Ela passou a virada do ano sozinha em casa, com medo de se abandonar à ideia de suicidar-se, sentada na cozinha, esperando a ajuda que nunca veio, esperando a ligação da filha, o abraço do filho, o pedido de perdão do esposo. E assim passou todo o mês de janeiro, quando os filhos voltaram, e o esposo também, mas agora para pedir que ela o ajudasse a montar uma nova casa. Comprou geladeira, fogão, forno microondas. Ele foi morar em outra casa. Mudou de namorada. Não conseguiu se manter financeiramente e voltou a morar com Dinorá. Ela adoeceu e passou 18 dias internada com meningite. Não recebeu nenhuma visita. Nem dos filhos. Após a alta voltou para casa, e reclama que ninguém pergunta por sua saúde, ninguém quer saber como ela está. Os dois filhos e o ex esposo fazem questão de ignorá-la. Ela sofre. Não quer mais viver nesta situação, mas não quer abandonar os filhos. Coisa de mãe. Dinorá vai levando. Quer abandonar tudo, ir morar no interior com o pai e as irmãs. Mas depois. Depois do Natal. Vai fazer um ano que o marido a abandonou. Ela agora odeia o Natal. Mas não quer passar longe dos filhos. A fragilidade dissimula uma força que nem a própria Dinorá conhece, pois não é fácil lutar contra a correnteza, mas ela ainda respira. Dinorá ainda nada, mas não sabe para onde.

FÁTIMA
Ela quer morrer. Porque o marido a deixou. Depois de 20 anos de casamento, ele a deixou, não pode mais viver com ela, e ela não quer morrer sem uma família. A mãe enlouqueceu depois que foi abandonada, e ela não quer ter o mesmo destino. Ela lembra da mãe, feliz, trabalhando, até que o pai foi embora. A mãe enlouqueceu. Ela também está enlouquecendo. Ela quer morrer.
O histórico de abandonos passa também pela mãe. Fátima foi violentada por um tio quando tinha 13 anos de idade e a mãe a repreendeu por dedurá-lo. Devia ter ficado calada. Foi responsável pelo divórcio da tia. A mãe, que devia protegê-la, queria proteger o casamento da irmã. O casamento é mais importante. Ela casou. Casou e agora, depois de tudo pronto, depois de tudo acertado, depois de tudo planejado, ele mudou de ideia. De certa forma, a sociedade ensinou isso a ela: só vai ser feliz se estiver casada. Agora tudo acabou, e ela quer morrer. Não quer matá-lo dentro de si. Não o esposo, mas o casamento. Quantas Fátimas teremos que desconstruir até que possamos reerguer em uma arquitetura saudável uma nova Fátima, completa e sozinha, mas viva. Porque no fundo, ela quer viver e ver-se assim, como se casada consigo mesma. Vamos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
E agora, Maria?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, Maria?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, Maria?
Está sem marido,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, Maria?

E agora, Maria?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu vestido de vidro,
sua incoerência,
seu ódio 
 e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
Maria, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é dura, Maria!

Sozinha no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, Maria!
Maria, para onde?
*Livre adaptação do poema JOSÈ, de Carlos Drummond de Andrade