Coincidentemente, assisti “Amor sem escalas”, pela primeira
vez, em um hotel na serra gaúcha, durante uma viagem de trabalho que me
consumiria quatro dias e três noites longe de casa. Nada comparado ao ritmo
alucinante em que o personagem principal, Ryan Binghan (interpretado por George
Clooney) vive com suas idas e vindas pelo mundo. Mas a minha mala com três
mudas de roupa espalhadas pelo quarto criaram uma atmosfera sinérgica com o
filme, e a catarse foi inevitável. Se pensarmos que o trabalho, hoje, ocupa um
papel central e determinante na vida das pessoas, as histórias do filme nos dão
excelentes oportunidades de analisar e contextualizar alguns conceitos que a
Psicologia, à luz da perspectiva institucional/organizacional, nos oferece.
Trabalho
Ryan exerce uma função extremamente delicada na empresa onde
trabalha: demite pessoas. Trabalha com metas, prazos, índices, parece muitas
vezes frio e distante diante de algumas situações que levariam qualquer pessoa
às lágrimas. Mas em muitas profissões passa-se por isso, não? Um médico, um
agente funerário, um psicólogo, muitas vezes lidam com situações delicadas com
uma distância necessária para ao acompanhamento do caso. Ryan, além disso, gosta
do que faz, se sente satisfeito com isso, desenvolveu habilidades que o
tornaram um dos melhores de sua área. Ryan é um funcionário dedicado, ambicioso
e que se realiza através de sua profissão. Ryan criou raízes com a função que
desempenha, ele é a sua profissão. Não tem casa, vive em aeroportos, hotéis,
ministra palestras sobre como viajar com uma mala apenas. Esse envolvimento que criou com a seu emprego,
que lhe é tão caro, que lhe é tão especial, esse laço que ele sabe ser tão
importante, esse pilar que direciona a vida de cada ser humano é justamente o
objeto destruído em suas visitas. Porque Ryan reúne-se com as pessoas
justamente para dizer-lhes que tudo acabou. E neste momento podemos dizer que
estamos pisando em um terreno fértil para a investigação dos processos
psicológicos inferidos nas relações de trabalho: a subjetivação.
Relação
Homem-Instituição
Porque o subjetivo? Porque o que cria este laço entre o
trabalhador e sua empresa vai muito além de um salário ou de uma ocupação. Óbvio
que os fatores práticos estão envolvidos: um trabalhador é o que ganha, é o que
fala, é o que veste, é o lugar onde trabalha, é o que a empresa é. Mas todos os
desejos que surgem a partir da relação do trabalhador moldam e transformam essa
pessoa a partir dessa relação homem-instituição. Neste momento podemos ver como
o homem faz a instituição e, no revés desse movimento, como a instituição faz o
homem. E talvez, neste momento, possamos também entender como essa díade
constrói também a sociedade em que vivemos, pois todas as configurações sociais
são moldadas, através dos tempos, pelo homem e suas instituições.
Filiação
Existe um momento no processo de demissão muito duro para a
maioria dos personagens que são visitados por Ryan: o momento em que a pessoa
entende que não fará mais parte daquele grupo, daquela empresa, daquela
instituição. Esse sofrimento é agravado pelo grau de filiação que cada um desenvolveu durante os anos de trabalho na
empresa. Esse laço, de pertencimento, de fidelidade, de dependência até, é o
que faz com que as empresas também obtenham sucesso na administração de seu
pessoal e de suas atividades. Porém, ao mesmo tempo que um grau intenso de
filiação gera frutos bons para a empresa, no momento de um desligamento gerará
um grande sofrimento àquele que perde seu lugar na organização.
Competência
O papel de Ryan é usar suas habilidades para garantir que
este processo de desligamento gere menos sofrimento às pessoas demitidas e
diminuir os custos que a empresa têm advindos deste processo. Podemos dizer que
o conceito de competência está intimamente ligado à capacidade de
aproveitamento nas situações de trabalho. Ou seja, cada situação trás ao
momento uma determinada necessidade, e o sujeito competente é aquele que tem as
habilidades e conhecimentos necessários para lidar com cada uma destas
situações. Podemos afirmar que, a partir do momento em que Ryan demonstra obter
sucesso na difícil empreitada de lidar com a frustração e a decepção do outro,
lidar com os imprevistos do momento do desligamento (pois nunca pode saber como
a pessoa irá reagir), é persuasivo e atinge geralmente suas metas (a
concretização dos acordos propostos) e ainda cria uma atmosfera de esperança e
renovação para algumas pessoas, temos um exemplo claro do desenvolvimento de
competências para uma determinada função. Mas são competências para este cargo,
nesta empresa, sob a perspectiva do filme. Por isso o conceito de competência é
tão abrangente no cenário atual: cada perfil será elaborado de acordo com as
necessidades de cada cargo, o que nos leva a um cenário que cada vez mais
fomenta a liberdade para a criação e o espaço para o desenvolvimento pessoal de
cada trabalhador de acordo com suas atividades e de acordo com suas
competências.
A renovação
Durante a história, o personagem passa por situações que o
obrigam a buscar uma certa renovação, reinventando alguns cenários, revendo
alguns conceitos, reavaliando sua condição na empresa e suas atividades. A
partir da reinvenção da relação que têm com o trabalho, acaba por transformar
também sua vida, e neste ponto voltamos ao contexto homem-instituição. O
trabalho faz o homem, o homem faz o trabalho. A história de uma vida talvez
possa ser também a história de toda a humanidade.