terça-feira, 21 de agosto de 2012

CIÊNCIA, FILOSOFIA E ARTE: quando o afeto encontra o conceito e transforma em percepção




O texto reproduzido a seguir foi publicado na EntreLinhas que comemora os 50 anos da regulamentação da profissão de Psicólogo no Brasil. Uma ótima leitura, um texto riquíssimo e que dá conta de explorar a nossa necessidade, como acadêmicos ou já profissionais da psico, de diálogo com várias áreas do conhecimento humano. De alguma forma, já temos consciência de que só ampliando nossos olhares poderemos dar conta de uma prática multi, pluri e libertária. A dica foi da ótima Patrícia Kirst, minha professora na Ulbra.

Boa Leitura! 


CIÊNCIA, FILOSOFIA E ARTE: quando o afeto encontra o conceito e transforma em percepçãoTÂNIA GALLI ¹


Diante da data em que comemoramos os 50 anos da regulamentação da Psicologia como profissão, não seria demasiado lembrar o sentido que as datas assumem em nossas considerações:  elas apenas indicam um ponto, um pequeno ponto de uma memória que não pode  ser resumida e sequer reduzida a um ponto originário. Datas sempre são indícios de acontecimentos extemporâneos, expressam uma faceta daquilo que foi possível trazer à existência dentre a multiplicidade de devires que todo acontecimento contém. As datas são efeitos desdobrados de um  acontecimento, tornam-se históricas porque assinalam nossa sede de origens, mas, na verdade, devem ser consideradas como aquele pico brilhante que, tendo sido efetuado, segue à tona, nos apontando para algo que se produziu como possível a partir de um imenso acontecimento. As datas não assinalam uma origem, não mostram heróis e gênios inspirados; elas contemplam a direção possível de uma evolução criadora de uma multidão anônima. Referem-se sempre à expressão seletiva que podemos recolher de um combate discursivo que se travou. As datas, nada mais são do que signos a serem colocados no mundo, uma espécie de enigma dos nascimentos e das existências, cuja tradução poderá se viabilizar por diversas direções no sentido de fazê-las durar ou extinguir-se. A data aparece para ser desnaturalizada de suas aparências presentes, sendo um nó problemático que aponta antes do que foi para aquilo que virá a ser. Um aniversário e sua comemoração, antes de tudo, referem-se àquilo que está por vir, que está por se expandir, que está por evoluir de forma criadora. Assim, as comemorações não se reduzem ao que foram, mas abrem-se ao que virá. Comemorar talvez pudesse vir a ser o que está por devir em nossas vidas, em nosso mundo e em nosso trabalho ativo. Trata-se, portanto, de comemorarmos o “ainda não”, bem como a nossa persistência pelas singularizações; comemorarmos um futuro que, já estando aí, pode nos tornar testemunhas de nosso tempo e construtores da história de nosso presente. Agora, a luta por conquistas no espaço discursivo de nossa ciência e profissão se de entre as posições que tomamos frente ao viver e ao morrer das formas, frente ao problema das origens filiativas-mnemônicas e de seus incessantes começos rizomáticos. Dá-se, enfim, como combate entre sossegados e desassossegados com as verdades e ideais pronunciados como naturezas do mundo e dos homens. Para suas invenções, os desassossegados forjam estilísticas, convocam diálogos para elementos que não pertencem à psicologia, porque se evadem, em busca de coragem,  para o campo da filosofia e das artes. Buscam recursos expressivos em domínios da não-psicologia, fazem dialogar conceitos, autores e épocas em um tom atmosférico que transforma a discursividade tradicional da academia para além dos estritos caminhos de uma cognição racionalista. Realizam uma espécie de reencantamento do concreto e, não sendo poetas e romancistas, tampouco filósofos e artistas, buscam ultrapassar, desde sua condição de acadêmicos, os limites linguísticos de sua disciplina, o que significa superar suas próprias barreiras identitárias.  Falamos e construímos um momento de defesa de diálogos transdisciplinares que provocam encontros entre as estruturas e o tempo, entre arquivo e testemunho, entre história e devir. Falamos dos campos da filosofia e das artes que instigam a percebermos para além de nosso sensório-motor, dirigidos aos deslocamentos do tempo, ao movere que, como elemento do mundo, nos torna videntes de outras visões pelas quais podemos acessar grandes e sutis misérias e grandezas imperceptíveis ao nosso olho nu e ordinário. Há 50 anos, dificilmente esse tema de diálogos entre Ciência, Filosofia e Arte nos ocuparia. Sua emergência assinala-se como parte das grandes transformações ético-estéticas e políticas pelas quais passa nossa Psicologia como ciência e profissão. Sublinhamos, assim, que entrelaçar os referenciais da ciência com aqueles advindos das artes e da filosofia procede de um plano que nos supera como indivíduos e que nos torna sujeitos de uma outra formação discursiva sobre a verdade do mundo e dos homens. Trata-se de apontar para a espetacular multidão anônima que tece seus modos de conhecer por meio de rizomas a-centrados, fugidios, fragmentários e cavados na terra, como expressão máxima de um esforço para fazer perseverar a vida, ali mesmo onde ela convoca novas resolutibilidades.  A imagem-mundo produzida por meio de reconhecimentos, calcada em percepções totalizantes e unificadas, imagem interessada e representável parece ter chegado ao seu cansaço. Hoje, a partir de conhecimentos que nos mostram o mundo para além de nossas formações psíquicas, que apontam para um fora do sujeito que somos e de nossa própria linguagem, nos possibilitam e mesmo exigem um esforço para o plano do esgotamento daquilo que ainda resta a dizer, daquilo que pode elevar nossa cognição ao plano de um empirismo transcendental.  A ruína do paradigma cientificista, universalizante, neutralizante e representacional nos atira a um novo plano de buscas para talvez vir a reconciliar nosso pensamento com a própria vida em sua expressão máxima. Trata-se de nos sabermos artífices de nosso mundo e também de nossa disciplina, pois esta, a Psicologia, será sempre expressão daquilo que nós próprios somos, tornado-se um gênero do conhecimento humano mais ou menos permeável aos diversos estilos de seus tradutores e produtores.

¹ Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente e pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional 
e de Informática na Educação. Atua a partir dos referenciais da filosofia da diferença nos temas tempo e subjetividade, corpo-arte-clínica, trabalho e tecnologias com ênfase nos processos de resistência e criação.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A Saga da Mediocridade




O medíocre sempre começa a falar pedindo desculpas. Ele não tem convicção sobre nada do que pensa, fala ou faz, porque tudo o que pensa, fala ou faz não é inteiro, não é verdadeiro. O medíocre é uma cópia mal produzida de si mesmo, da sua própria incapacidade de ser por completo, e seu repertório é uma fala mal ensaiada que, há anos, exibe sem pudor. Seu ego é frágil, incapaz, mas e ele insiste em chamar atenção mesmo às custas de despertar a pena alheia. Ele não percebe a pena alheia. O medíocre só percebe a si mesmo. Ele acredita na sua genialidade medíocre, e coloca tudo na vitrine, até os rascunhos vazios.
Dê dinheiro ao medíocre e uma espécie de mau gosto nojento e soberbo saltará aos olhos de todos, suscitando o asco nos corações alheios, destruindo os sorrisos. Dê poder ao medíocre e ele consegue ser desleal até com as baratas que habitam o vão entre a cama e a parede do seu apartamento. O medíocre gosta das baratas, porque ninguém gosta delas. Dê sucesso ao medíocre e ele sucumbe sozinho, porque ninguém vai ter nem coragem de puxar o seu tapete, pois que chutar cachorro morto é fácil, difícil é manter-se sóbrio.
Essa espécie, cada vez mais presente, talvez seja um mal necessário. É a partir da observação do medíocre que às vezes criamos coragem pra produzir algo que exista no mundo, para o mundo, com o mundo. A reflexão sobre a mediocridade já é um largo passo. E talvez o desejo de não me tornar um deles seja o momento a partir do qual eu deixe de ser  mais um medíocre.